quarta-feira, 22 de junho de 2011

Foucault e seus poderes

A definição de poder por Foucault é muito diferente das anteriormente dadas por filósofos políticos; muito mais que um objeto que se concentra nas mãos de um homem ou de uma instituição,é práticas e mecanismos que atuam tanto num nível macro quanto no micro, que são instituições não necessariamente ligadas ao Estado. Será, portanto, feito uma pequena análise e exemplificação dos poderes atuantes contemporaneamente, com a exemplificação de algumas formas em que as relações de poder se dão.

Comparando os dias atuais com o século XVII, se pode perceber que o objetivo geral das instituições que sobrevivem ainda se mantém o mesmo, assim como as novas que foram fundadas se alinharam a este. O que mudou foi a estrutura delas, com uma “modernização” do poder disciplinar para gerar cidadão ainda dóceis, úteis, produtores e consumidores, mas com uma política que valoriza a vida, ou seja, com o surgimento do poder biopolítico em complementação ao primeiro.

O poder disciplinar tem em sua base o adestramento dos homens, a maximização de sua utilidade, e busca conter o indivíduo dentro do capitalismo, apesar das misérias geradas por este. Ele permite uma eficácia do exercício do poder através do saber constituído a partir da vigilância exercida na hora e lugar onde esse poder disciplinar ocorre. O poder aqui não deve ser visto como algo repressor, mas sim de uma maneira positivista, como algo que visa um rendimento maior dos homens. Esse poder pode ser exemplificado através do panóptico de Jeremy Bentham; uma vigilância sendo exercida permanentemente sobre o indivíduo, que se mantém dócil, e portanto se torna a chave para o controle.

O poder biopolítico, que vem em complementação ao poder disciplinar, muda o foco das coisas: agora, a principal estratégia de domínio se torna a manutenção e potencialização da vida. Se antes a vigilância não era vista, porém sentida fisicamente através de símbolos, agora ela se torna quase que invisível, e o sentimento de ser observado se espalha através de câmeras, monitoramentos, e até mesmo de uma arquitetura que privilegia espaços abertos, com muitos vidros e com cada vez menor número de divisórias, possibilitando uma visão maior do ambiente e das atividades realizadas. O saber gerado por essa vigilância, portanto, vai perdendo sua necessidade de ser restrito a um espaço e tempo determinados, e se torna mais acurado através da precisão dos registros efetuados por essa vigilância.

Paulatinamente, essa vigilância vai se transferindo do Estado para outras instituições, até chegar às mãos da própria povo, que começa a supervisionar a si mesmo. Um exemplo disso é a recente implementação de um sistema de denúncia próprio para o metrô de São Paulo, onde os passageiros podem enviar mensagens de texto para determinado número com informações sobre o meliante e a ocorrência em si. As pessoas incorporam as regras, e passam elas mesmas a serem parceiras em sua dominação.

Voltando à característica principal do poder biopolítico, a de manutenção da vida, nas palavras do próprio Foucault, este se arma de “uma tecnologia que agrupa os efeitos de massa próprios de uma população, que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso compensar seus efeitos.” Mais uma vez, em oposição ao poder disciplinar, vemos a mudança de centro do indivíduo como corpo e força para a população, ou seja, uma massa individualizada, que é de perto regulamentada quanto aos processos biológicos, e esse controle fica a encargo do Estado, que se torna, portanto, bio-regulamentador.

Porém, após certa análise de atitudes tomadas por esse Estado, chega-se ao paradoxo do poder biopolítico: como pode em uma sociedade que defende a vida pode haver o exercício do poder de fazer morrer? A lógica para a justificativa desse comportamento vem da guerra, do “se você quer viver, é preciso que você faça morrer”. A preservação da vida de alguns as vezes implica na suspensão da vida de outros, justificando um racismo fundado não somente em preceitos de etnia, mas sim de inferioridade em várias esferas que ameaçariam biologicamente os “eleitos”. Portanto, a definição de guerra aumenta seu escopo para algo também necessário à manutenção da vida, e a expressão desse pensamento pode ser vista em diversos casos, desde os conflitos nos Bálcãs até a guerra contra o terror empreendida pelos EUA na última década, e tendo como sua expressão mais clara e caricata o nazismo no século XX. É muito claro que a lógica biopolítica se encaixa perfeitamente ao capitalismo até mesmo nesse sentido, sendo os burgueses beneficiados com essa preservação da vida em supressão do direito de outros economicamente menos favorecidos.

Muito mais que uma questão moral, o poder se coloca na obra de Foucault como algo livre de concentração e de forma, como algo mutável e multifacetado, do qual somos agentes passivos e ativos de seu exercício, e que portanto não permite a luta do seu exterior, mas sim uma resistência a partir de movimentos de contestação localizados.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Marx ontem, Marx hoje

Hodiernamente, em relação aos tempos de Marx, a classe trabalhadora se tornou bem mais heterogênea, complexa e fragmentada. Não obstante, o Capitalismo não mais precisa integrar o maior número de pessoas possível em si, “no mercado”, para se sustentar e lucrar; a exclusão é uma das marcas do Capitalismo que temos nos dias de hoje, quando este modo de produção já abrange o mundo inteiro, mesmo que com algumas limitações em alguns países. Para uma análise sobre o que o Capitalismo se tornou hoje em dia e sobre como se dá a exploração do homem pelo próprio homem, por conseguinte, seria conveniente começar a discorrer sobre a seguinte questão: que decorre dessa mudança no Capitalismo e na classe trabalhadora ocorrida dos tempos de Marx até nossos dias?


O Capitalismo não precisa estar integrando todas as pessoas em seu seio produtivo ou no consumo, aqueles que se encontram fora dele, desempregados, por exemplo, não demonstram uma crise do capitalismo; pelo contrário, são parte essencial dele. Para Marx, ao trabalhador a única coisa que ainda resta é a mão de obra para ser vendida (e por conseguinte para comprar o que o trabalhador e sua família necessitam para sobreviver – o próprio autor ironiza esse fato comparando-o com a escravidão, dando a entender que o escravo, que se vende, se encontra em melhor situação que o trabalhador, pois, por ser propriedade, seu dono não o deixará morrer de fome ou por outro motivo, seria prejuízo; mas, caso o trabalhador morra, como há desempregados de sobra, outro pode vir e substituir o lugar daquele sem que haja prejuízo ao patrão). O desemprego é então necessário, pois atende a uma demanda do mercado, que é a precarização do trabalho (que varia em intensidade de lugar para lugar): se há desemprego e uma situação de vida deplorável em Bangladesh, por exemplo, quando uma transnacional vai para o país em busca de mão de obra barata para a montagem de seus produtos, ela consegue contratar pessoas, explorá-las de maneira extrema e manter salários baixíssimos pelo tempo que for conveniente à empresa, à transnacional, até que esta mude de país ou região. Isso maximiza os lucros, a extração do mais-valor (mais-valia). A exploração deste caso se explica pelo fato de que, para sobreviver, ou mesmo para sobreviver em condições um pouco menos deploráveis, o trabalhador em questão trabalha independentemente da exploração de sua mão de obra. Esse trabalhador, assim, não pode contestar o que ganha ou simplesmente suas condições de trabalho, por correr o risco de ser demitido e pelo fato de que muito dificilmente isso mudaria alguma coisa e, numa análise sobre a Alienação em Marx, porque o trabalhador não consegue se identificar com o produto de seu trabalho, não sabe o valor do próprio trabalho, bem como a sociedade não sabe o valor do trabalho contido nas mercadorias; a sociedade e o trabalhador são alienados (e na época de Marx já o eram) – este seria outro motivo, menos empírico em relação à questão dada, da sujeição do trabalhador a condições deploráveis de trabalho.


Ainda sobre subempregos e exploração extrema da mão de obra, num exemplo que acontece hoje em dia, pode-se mencionar casos em que mulheres são contratadas bem jovens, caso não tenham filhos nem casa para sustentar (a fim de que seus salários sejam os mais baixos possíveis) e demasiadamente exploradas por alguns anos, de modo que, ainda novas, são demitidas quando já foram totalmente “gastas” (algo de certa forma semelhante à Lei dos Sexagenários à época do Império Brasileiro ou às cartas de alforria concedidas por muitos senhores de escravos quando estes não lhes eram mais úteis, foram completamente esgotados, desgastados, sendo que, libertos e inválidos, basicamente tinham que contar com a sorte para ter uma sobrevida por algum tempo). Se essas mulheres engravidarem (exames são feitos rotineiramente para verificar se engravidaram ou não), são demitidas. É algo similar, de certa forma, ao que empresas (principalmente nos EUA) já têm feito nos últimos tempos, ao evitar contratar ou ao demitir funcionários pelo fato de serem dependentes químicos, de álcool, tabaco ou substâncias ilícitas, por terem doenças genéticas a serem manifestadas, obesidade, et cetera, a fim de evitar custos futuros com planos de saúde ou com faltas do trabalhador por problemas de saúde. E isso em um nível bem melhor de salários e condições de trabalho; ou seja, reduzir custos para aumentar a extração de mais-valor e assim aumentar o lucro é uma constante no Capitalismo, com o trabalho precarizado ou não; esse ponto já foi há muito constatado por Marx e outros autores.

Há também, gravitando sobre a máxima do lucro, questões como “empregos de brincadeira”, nos quais só se trabalha por um tempo para “ganhar experiência” (como acontece em muitas empresas de fast food, por exemplo), externalidades (cortar todos os custos que não sejam necessários diretamente à empresa) e a questão de corporações pagarem multas por terem optado por transgredir a lei em prol da lucratividade, mesmo sabendo de perigos em seus produtos, por exemplo.

No documentário The Corporation, o último dos três exemplos anteriores é claramente mencionado: empresas pagam multas que saem mais baratas que consertar seus produtos, mesmo que os defeitos neles causem mortes, ferimentos gravíssimos ou problemas aos consumidores (no filme, há o exemplo de um carro que foi para o mercado mesmo defeituoso e que acabou causando mortes e ferimentos a consumidores, sendo que isso poderia ter sido evitado antes de colocá-lo em circulação).

Nesse documentário há uma interessante comparação entre corporações e psicopatas, visto que, na lei de muitos países (como os EUA), as corporações são vistas como cidadãos e várias atitudes das corporações se assemelham a atitudes de psicopatas. E tais atos são possíveis de serem feitos pelas corporações pois elas “não podem ser presas” por não serem cidadãos de carne e osso e seus membros se isentam de responsabilidade pelos crimes da corporação como um todo; é uma questão de optar por pagar multa ou não, a depender do que custará menos à corporação.

Essas corporações são privadas, não são do governo, mas este permite que elas existam; são propriedade privada, mesmo que dividida entre duas ou mais pessoas. Mais do que permitir, os governos, numa análise tendo Marx como matriz, querem que as corporações existam, pois os Estados (burgueses) têm a função de proteger e legitimar a propriedade privada. Apesar de tantas atrocidades que podem ser cometidas por corporações, o Estado serve para que elas existam. Assim, Marx pensava no Comunismo como uma Sociedade sem propriedade privada e, por conseguinte, sem Estado (que existe apenas para legitimar a última). E numa Sociedade tal, não haveria exploração do homem pelo próprio homem (ao menos depois de uma fase de transição, de uma Ditadura do Proletariado, na qual gradativamente o Estado deixaria de existir) nos termos de expropriação dos meios de produção do trabalhador e da exploração deste, alienação da produção do trabalhador, extração de mais-valor a partir dele, embora Marx não tivesse teorizado precisamente sobre o Comunismo em si, pois seria algo a ser criado conforme a História se desenvolvesse (e nem teria como ele ditar como seria o Comunismo, afinal, ele era demasiadamente materialista para tanto, para teorizar tudo sobre algo que não existia e cujas condições de criação ainda não estavam determinadas).

Para que “o proletariado implantasse sua ditadura”, poderia haver uma revolução, com armas (mas uma revolução social; a primeira da história, para o autor, visto que as outras foram políticas), uma crise de questão matemática, no qual o baixo número de funcionários e empregados em detrimento da crescente produção levaria o Capitalismo à ruína ou uma conscientização de classe, na qual todos os operários em algum momento parassem de trabalhar ou tomassem alguma atitude organizada para fazer esse modo de produção ruir. Mas, como a Escola de Frankfurt constatou posteriormente, nas primeiras décadas do século XX, nenhuma dessas três alternativas por Marx apontadas continua possível para a derrota do Capitalismo.

Saindo da esfera teórica do Comunismo para Marx, um dos efeitos hodiernos da exploração dos trabalhadores aliado ao desemprego, constatado em estudos que são feitos desde o século passado, é o aumento de doenças mentais decorrentes da pressão do trabalho, de não poder ser demitido, de não poder reivindicar, fazer greve (salvo exceções), com risco de serem demitidos e ficarem numa situação pior do que já estão sendo explorados. Esses temores são úteis às empresas, pois os funcionários ficam dóceis e eficientes.

É evidente que a exploração do homem pelo próprio homem existe no Capitalismo, é amoral e é par excellence necessária ao modo de produção capitalista, tanto nos tempos de Marx como hoje. Assim sendo, a contribuição de Marx é evidente ainda em nossos dias para entender os fundamentos, características do mundo em que vivemos, do ponto de vista econômico e social; é importante evitar “economicismos marxistas”, ver tudo do ponto de vista econômico (e ainda mais do ponto de vista econômico de Marx exclusivamente), mas é inegável que a visão do clássico autor é de extrema importância para que se entenda o período pelo qual passamos, dos pontos de vista econômico, social, histórico, ad infinitum (até porque enumerar tais pontos é tirar a interdisciplinaridade do autor que busca ver a realidade como um todo, é trair o próprio pensador de peso que foi Karl Marx).

terça-feira, 24 de maio de 2011

Siga o Mestre

Em o "Discurso da Servidão Voluntária", o autor faz um apelo feroz à liberdade, mantendo-se contra a servidão, tirania ou qualquer forma de poder/governo que sufoque a liberdade de seu povo, levando-os ao sofrimento e a realizar as vontades impostas pelo seu soberano. Boétie examina as causas que levam um grupo de indivíduos a aceitar a submissão a um único governante, que se deixam dominar e encantar pelo nome de uma só pessoa, que sendo apenas uma, não deveria causar tal efeito.

Semelhante a Rousseau, Boétie diz que o homem não apenas goza da vida em comunidade em paz, como também goza de plena liberdade. A desigualdade é natural (física) e não cria desigualdade política. Boétie ainda afirma que os indivíduos que nasceram com mais força ou mais habilidade devem proteger os mais fracos, ao que Hobbes diz totalmente o contrário. Enquanto Rousseau acredita nas idéias de compaixão e perfectibilidade do homem, que implica na preservação da espécie, manutenção do coletivo unido, Hobbes apresenta o estado de natureza humano conflituoso, onde o homem já nasce em disputa e não sente prazer na companhia de outros homens. A busca pela honra e a glória leva à guerra de todos contra todos, onde a melhor defesa é o ataque.

Rousseau ressalta em seu "Discurso Sobre a Desigualdade" que todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas idéias até certo ponto, e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. Quando lhes é tirado (dos humanos) o maior dos bens, a liberdade, no entanto, não há necessariamente uma luta incessante pela retomada do que é seu por direito, nem a morte: simplesmente há o arrependimento por tê-la perdido. Boétie explica isso através da conclusão de que o homem não deseja a liberdade, pois acredita que basta desejá-la para possuí-la.

"Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes tenha dado provas de grande previdência para protegê-los, grande audácia para defendê-los, grande cuidado para governá-los, se doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para coloca-lo num lugar onde poderá malfazer; mas certamente não poderia deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só se recebeu o bem."

No trecho acima, o autor diz que muitas vezes os povos deixam sua liberdade na mão do soberano a fim de que a ordem se mantenha, ato que tanto Rousseau, Hobbes e Locke chamariam de Contrato Social, coisa que Boétie acha completamente absurdo, já que todos os animais lutam por liberdade e necessitam dela para a sua sobrevivência. O que caracteriza o homem como homem é a liberdade, e a servidão é o estado mais bestial em que poderíamos nos encontrar. Portanto, a única explicação possível para o autor é a de que os próprios povos se deixam dominar, pois não desejam ser livres, e sim dominados. Como o autor diz, a liberdade é um bem tão grande que, uma vez perdida, todos os males vem a seguir, e os bens que restam perdem o seu sabor em frente à servidão.

"Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal - melhor dizendo, persegue-o. Eu não o exortaria se recobrar a liberdade lhe custasse alguma coisa; como o homem pode ter algo mais caro que restabelecer-se em seu direito natural e, por assim dizer, de bicho voltar a ser homem? Mas ainda não desejo nele tamanha audácia, permito-lhe que prefira não sei que segurança de viver miseravelmente a uma duvidosa esperança de viver a sua vontade. Que! Se para Ter liberdade basta desejá-la, se basta um simples querer, haverá nação no mundo que ainda a estime cara demais, podendo ganhá-la com uma única aspiração e que lastime sua vontade para recobrar o bem que deveria resgatar com seu sangue - o qual, uma vez perdido, toda a gente honrada deve estimar a vida desprezível e a morte salutar?"

Qual o motivo de haver tamanha desigualdade entre o soberano e seu povo, de maneira que há o abuso e descaso pelos que o colocaram no poder? E por que multidões se curvam a um governante, abdicando de sua liberdade?

"De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades, de onde lhe vêm senão dos vossos? Como ele tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria atacar-vos se não fôsseis receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e traidores de vós mesmos?"

Para Boétie, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito. Através dos costumes e da educação, o que antes foi feito pela obrigação, agora é feito sem esforço e de boa vontade. Os homens são o que a educação faz de cada um, e essa obediência e hábito enraizados na população legitimam o governo do tirano. Vê-se, então, a importância da educação. Para Rousseau, a educação é vista como uma ferramenta para desenvolver o espírito crítico de contestação à desigualdade moral e jurídica, instaurada pela propriedade privada.

Rousseau discute em sua obra a origem da desigualdade na história do homem, e conclui que não é possível, em estado de natureza, que o homem sinta mais necessidade que outro homem, já que se vive de maneira coletiva e há o conhecimento da palavra, atendendo assim as necessidades mútuas e facilitando a sociabilidade entre os povos. Não existe o ser miserável ("aquele que sofre de privação dolorosa e sofrimento do corpo ou da alma") neste período, pois como seria possível a sua existência em um ambiente onde o Ser é livre e seu coração está em paz e seu corpo é saudável? O pacto de Rousseau é a cessão voluntária de direitos para que se chegue à igualdade, onde o soberano é o povo e a vontade geral é o que é melhor para o coletivo. O ato da propriedade e as suas consequentes guerras levaram a submissão a um governante, o que deu início à desigualdade e ao surgimento dos miseráveis.

Hobbes diverge no ponto em que a igualdade entre os homens restabeleceria o estado de natureza, ou seja, a guerra contínua de todos contra todos. O fim desse estado de terror se dá através do contrato social, em que homens abrem mão da liberdade irrestrita que possuíam no estado de natureza. O soberano deve garantir a vida da sociedade, e a obediência dos súditos tem como finalidade a proteção.

Assim, anseia-se por ser livre apenas os que tiveram contato com a liberdade; o que cresce em um ambiente em que ela é presente está tão acostumado que não consegue viver sem ela. É o que acontece com os povos que vivem sob a tirania e servidão, como diz Boétie. Há o costume e a ingenuidade dos homens quanto a sua "natureza". A falta do conhecimento de outras formas de vida faz com que a dominação se torne muito fácil, e é o maior desejo do tirano que seu povo permaneça em suas rédeas. Logo, uma massa uniforme que não conhece nada além da tirania não tem referências para odiá-la ou clamar por liberdade, já que nunca a tiveram. Eis um trecho de Boétie:

"O grão-turco percebeu bem isto; que os livros e a doutrina dão aos homens, mais que qualquer outra coisa, o sentido e o entendimento para se reconhecerem e odiar a tirania; averiguo que em suas terras ele não tem sábios, nem os quer. Ora, comumente, ficam sem efeito o bom zelo e afeição dos que apesar do tempo conservaram a devoção à franquia, por mais numerosos que sejam, porque não se conhecem; sob o tirano, é-lhes tirada toda a liberdade de fazer, de falar, e quase de pensar: todos se tornam singulares em suas fantasias."

Próximo texto: a servidão voluntária

Olá, pessoal. O próximo texto terá como tema a reflexão sobre a servidão voluntária, que se encontra no texto "Discurso da servidão voluntária", de E. de la Boétie. Devemos recuperar o conceito de liberdade em Hobbes, Rousseau e/ou Locke e estabelecer uma relação entre os autores.
Eis o texto da servidão voluntária:


Bom texto!

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Quando a filosofia encontra a Rússia

Ao olharmos para nossa atual sociedade, no âmbito nacional, percebemos uma série de divisões e, ao mesmo tempo, uma série de agrupamentos nos mais diversos campos de ação, com no caso da rendam opinião, área de atuação, entre outros. No âmbito circuito internacional, tal cenário não é tão diferente, e sim mais amplo.

Se olharmos além, como para as sociedades de nossos ancestrais, não encontraremos exatamente o mesmo tipo de segregação e agrupamentos; porém, eles existirão de acordo com o contexto e as temporalidades do local em decorrência da época em que está inserido.
Na análise a seguir, tentaremos observar exatamente esse aspecto de agrupamentos (trabalhadores e revolucionários) e o que eles são capazes de gerar e, ainda mais, como eles podem, sendo por vezes tão amplos, ser destruídos ou minimizados, como está registrado nas linhas da história pela Revolução Russa.
Em meados do século XX, pode-se dizer que a Rússia era um país essencialmente agrário, tendo em vista que cerca de 80% de todas as atividades dos trabalhadores espalhados pelo país concentravam-se no circuito agrário, enquanto somente 20% pertenciam à classe trabalhadora industrial; as indústrias russas eram minimamente evoluídas e instaladas pelo país, e ambas as classes exerciam suas funções em uma situação que, se analisada atualmente, feriria muitos dos direitos humanos e do trabalhadores que conhecemos.
Tendo em vista o cenário político do país na época, não podemos esquecer do governante, o Qzar Nicolau II; em uma rápida explicação maquiavélica, seu governo era despótico, na qual para a manutenção da ordem, principalmente nos anos pré-revolução, a violência passou a ser uma de suas armas principais.

Ainda segundo Maquiavel, para um governante, o melhor seria ser bom e praticar uma política menos violenta o possível para assim ser amado. Porém, se isso não fosse possível, o melhor seria usar a violência e sua força de Príncipe para com seus súditos, visando a perpetuação do poder. Uma situação ocorreu quase quatrocentos anos após tais palavras maquiavélicas, e ficou marcada por um detalhe. No episódio conhecido por Domingo Sangrento, que ocorreu em São Petersburgo na Rússia em vinte e dois de janeiro de 1905, trabalhadores e suas famílias foram, de maneira pacífica, fazer um protesto em frente ao palácio de inverno (residência dos monarcas russos), visando abrir os olhos do Qzar para a situação do povo a respeito das penúrias passadas no trabalho e na vida, já que o país se encontrava na miséria desde 1861, onde foi implementada a emancipação dos servos, onde esses podiam comprar as terras em que trabalhavam, o que não era possível já que eram miseráveis; logo, a emancipação feita para atender a necessidade do país de realizar uma rápida transição para o capitalismo apenas piorou a situação. Além disso, outros fatos pioravam a crise da Rússia e aumentavam a insatisfação popular, como a construção da Ferrovia Transiberiana, que trouxe o capitalismo e investimentos industriais à Moscou e São Petersburgo, fazendo com que o povo camponês miserável viesse trabalhar nas indústrias, onde a vida era tão precária quanto no campo. No entanto, o acontecimento que foi a causa imediata da Revolução em 1905 foi a guerra russo-japonesa (1904- 1905), onde a derrota do país e as milhares de vidas perdidas esgotaram a tolerância do povo para com o Qzar.

Como resposta ao ato, por uma ordem direta do Qzar, a guarda nacional, posicionada nos arredores do palácio, atacou a multidão causando inúmeras mortes e incendiando definitivamente o coração dos revolucionários que, a partir desse episódio, começaram a empenhar-se na revolução de maneira mais concreta e organizada. Nesse ponto toda a revolução ocorre; há a tomada do poder, o choque entre Mencheviques e Bolcheviques; todo o processo revolucionário ocorreu, process que não será tratado nesse texto. Pulemos agora aproximadamente vinte anos até Vladimir Lenin, que liderou a já criada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e agora chega a hora de Josef Stalin liderar a república soviética.

Nascido na Geórgia em 1878, desde jovem, Stalin sentiu-se atraído para aspectos revolucionários, tanto que chegou a trabalhar muito próximo a Lenin. No governo Stalinista, além da onda de melhorias e industrialização pela qual a Rússia passou na época, uma das principais características de tal governo é o próprio termo "Stalinismo", uma vez que o socialismo tomou uma forma mais autoritária e militar nas mãos de Stalin, e foi exatamente tal ocorrência que desestabilizou o curso russo no processo comunista e marcou para sempre a história do país como uma época nebulosa e de luto.

Como todo governo autoritário, o de Stalin não era diferente: tinha como característica toda uma política de propaganda, manutenção de uma suposta ideologia, o sumiço com toda a oposição, milhares de deportações, entre outros.

Segundo Hobbes, devido a alta periculosidade da natureza humana, os homens devem fazer um pacto, dando o direito e o poder à uma pessoa em especial. Tal pessoa deverá cumprir o pacto, visando sempre manter a vida dos homens que assinaram o pacto, uma vez que, devido a belicosidade natural aos homens, uma vida em sociedade não seria possível sem um ser que a gerisse e garantisse. A esse ser Hobbes nomeia "O Leviatã", fazendo alusão a um suposto monstro marinho mitológico de poder tamanho que, na antiguidade, à todos assustava.

Uma proeza foi conquistada por Stalin. Ele conseguiu se inserir tanto na visão Hobbesiana do Leviatã, na medida em que era ele quem tinha a responsabilidade sobre o povo e de guiar o Estado, quanto na visão mitológica do Leviatã, ao passo que se transformou em monstro temido por todos. Maquiavel provavelmente diria que tais ações eram somente os meios encontrados por Stalin para manter-se no poder. Porém nunca saberemos, afinal Stalin nunca foi de "se passar" por Príncipe. Diversos estudos e análises foram feitas tentando descobrir a quantidade de vítimas do governo autoritário Stalinista. Em média, diz-se que houve cerca de oitocentas mil execuções, porém o escritor russo Vadim Erlikman defende a idéia de que cerca de um milhão e meio de execuções ocorreram.
Inúmeras outras análises poderiam ser feitas, porém, por enquanto, as feitas acima bastam. Atualmente, devido a crescente população mundial, fica mais trabalhoso uma eficiente organização estatal. Durkheim afirma que é exatamente nesse aspecto que entra a burocracia, na medida em que ela possibilita uma melhor gestão estatal. Porém, o que ocorre quando um maquiavélico Leviatã chega ao poder?


quarta-feira, 6 de abril de 2011

Bem comum? Bem (quase) comum?

Pressupõe-se como "bem comum" aquilo - sentimento ou coisa - que possui importância, agrada e pertence a todos, é, portanto, em sua ideologia pura, algo utópico. Afinal, cada ser humano possui suas próprias crenças e pensamentos, por conseguinte torna-se impossível uma homogeneização de opniões. Não obstante, podemos afirmar, decerto, que existe uma maioria de ideias comuns; caso contrário, não teríamos uma sociedade de relações humanas, e sim, uma sociedade do culto ao silêncio ou à guerra entre os indivíduos. Em virtude da existência dessa marjoritariedade, há certa supressão da minoria, porém essa pequena parcela não sumirá pelo fato de termos criado uma civilizada intermediadora das relações humanas, a chamada política. Esta por sua vez, visa a priori a defesa e ação em prol dos interesses de um grupo; mas para que os ideais possam coexistir, é preciso o ordenamento dos mesmos. E a resposta para tal necessidade foram as inúmeras produções como Leis, Direitos Humanos, Hierarquias, Sistemas Igualitários, Soberania, entre outros, que mesmo sendo, em alguns aspectos, contraditórios, todos eles se baseiam na existência do meio coercivo visível e invisível, a "ordem". Sejam elas as ordens que impõe limites - jurídica, ética, poderio hierárquico - ou a ordem subconsciente - pscicológica, moral e responsabilidades. Sendo assim, na tentativa de abranger o maior possível de número de interesses -ou seja, ela não favorece a todos-, a ordem torna-se um bem (quase) comum, dentro das diferentes perspectivas do manejamento político.
Por Ana Carolina Marcheti. A ordem é importante para garantir a eliminação ou minimização dos conflitos, mas a partir do momento em que ela exclui ou é desigual a uma fração da sociedade, ela não pode ser vista como um bem comum. Uma sociedade com um lider despótico, garante a ordem, mas usa a violência excessiva e não visa necessariamente a qualidade de vida da população. A justiça, por sua vez, tanto juridicamente quanto socialmente deve ser vista como uma meta para o Estado de direito uma vez que garante direitos iguais a todos, participação política e faz com que a sociedade seja agente das políticas do Estado. Portanto, a justiça, e não a ordem, é o bem comum da política.