quarta-feira, 22 de junho de 2011

Foucault e seus poderes

A definição de poder por Foucault é muito diferente das anteriormente dadas por filósofos políticos; muito mais que um objeto que se concentra nas mãos de um homem ou de uma instituição,é práticas e mecanismos que atuam tanto num nível macro quanto no micro, que são instituições não necessariamente ligadas ao Estado. Será, portanto, feito uma pequena análise e exemplificação dos poderes atuantes contemporaneamente, com a exemplificação de algumas formas em que as relações de poder se dão.

Comparando os dias atuais com o século XVII, se pode perceber que o objetivo geral das instituições que sobrevivem ainda se mantém o mesmo, assim como as novas que foram fundadas se alinharam a este. O que mudou foi a estrutura delas, com uma “modernização” do poder disciplinar para gerar cidadão ainda dóceis, úteis, produtores e consumidores, mas com uma política que valoriza a vida, ou seja, com o surgimento do poder biopolítico em complementação ao primeiro.

O poder disciplinar tem em sua base o adestramento dos homens, a maximização de sua utilidade, e busca conter o indivíduo dentro do capitalismo, apesar das misérias geradas por este. Ele permite uma eficácia do exercício do poder através do saber constituído a partir da vigilância exercida na hora e lugar onde esse poder disciplinar ocorre. O poder aqui não deve ser visto como algo repressor, mas sim de uma maneira positivista, como algo que visa um rendimento maior dos homens. Esse poder pode ser exemplificado através do panóptico de Jeremy Bentham; uma vigilância sendo exercida permanentemente sobre o indivíduo, que se mantém dócil, e portanto se torna a chave para o controle.

O poder biopolítico, que vem em complementação ao poder disciplinar, muda o foco das coisas: agora, a principal estratégia de domínio se torna a manutenção e potencialização da vida. Se antes a vigilância não era vista, porém sentida fisicamente através de símbolos, agora ela se torna quase que invisível, e o sentimento de ser observado se espalha através de câmeras, monitoramentos, e até mesmo de uma arquitetura que privilegia espaços abertos, com muitos vidros e com cada vez menor número de divisórias, possibilitando uma visão maior do ambiente e das atividades realizadas. O saber gerado por essa vigilância, portanto, vai perdendo sua necessidade de ser restrito a um espaço e tempo determinados, e se torna mais acurado através da precisão dos registros efetuados por essa vigilância.

Paulatinamente, essa vigilância vai se transferindo do Estado para outras instituições, até chegar às mãos da própria povo, que começa a supervisionar a si mesmo. Um exemplo disso é a recente implementação de um sistema de denúncia próprio para o metrô de São Paulo, onde os passageiros podem enviar mensagens de texto para determinado número com informações sobre o meliante e a ocorrência em si. As pessoas incorporam as regras, e passam elas mesmas a serem parceiras em sua dominação.

Voltando à característica principal do poder biopolítico, a de manutenção da vida, nas palavras do próprio Foucault, este se arma de “uma tecnologia que agrupa os efeitos de massa próprios de uma população, que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso compensar seus efeitos.” Mais uma vez, em oposição ao poder disciplinar, vemos a mudança de centro do indivíduo como corpo e força para a população, ou seja, uma massa individualizada, que é de perto regulamentada quanto aos processos biológicos, e esse controle fica a encargo do Estado, que se torna, portanto, bio-regulamentador.

Porém, após certa análise de atitudes tomadas por esse Estado, chega-se ao paradoxo do poder biopolítico: como pode em uma sociedade que defende a vida pode haver o exercício do poder de fazer morrer? A lógica para a justificativa desse comportamento vem da guerra, do “se você quer viver, é preciso que você faça morrer”. A preservação da vida de alguns as vezes implica na suspensão da vida de outros, justificando um racismo fundado não somente em preceitos de etnia, mas sim de inferioridade em várias esferas que ameaçariam biologicamente os “eleitos”. Portanto, a definição de guerra aumenta seu escopo para algo também necessário à manutenção da vida, e a expressão desse pensamento pode ser vista em diversos casos, desde os conflitos nos Bálcãs até a guerra contra o terror empreendida pelos EUA na última década, e tendo como sua expressão mais clara e caricata o nazismo no século XX. É muito claro que a lógica biopolítica se encaixa perfeitamente ao capitalismo até mesmo nesse sentido, sendo os burgueses beneficiados com essa preservação da vida em supressão do direito de outros economicamente menos favorecidos.

Muito mais que uma questão moral, o poder se coloca na obra de Foucault como algo livre de concentração e de forma, como algo mutável e multifacetado, do qual somos agentes passivos e ativos de seu exercício, e que portanto não permite a luta do seu exterior, mas sim uma resistência a partir de movimentos de contestação localizados.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Marx ontem, Marx hoje

Hodiernamente, em relação aos tempos de Marx, a classe trabalhadora se tornou bem mais heterogênea, complexa e fragmentada. Não obstante, o Capitalismo não mais precisa integrar o maior número de pessoas possível em si, “no mercado”, para se sustentar e lucrar; a exclusão é uma das marcas do Capitalismo que temos nos dias de hoje, quando este modo de produção já abrange o mundo inteiro, mesmo que com algumas limitações em alguns países. Para uma análise sobre o que o Capitalismo se tornou hoje em dia e sobre como se dá a exploração do homem pelo próprio homem, por conseguinte, seria conveniente começar a discorrer sobre a seguinte questão: que decorre dessa mudança no Capitalismo e na classe trabalhadora ocorrida dos tempos de Marx até nossos dias?


O Capitalismo não precisa estar integrando todas as pessoas em seu seio produtivo ou no consumo, aqueles que se encontram fora dele, desempregados, por exemplo, não demonstram uma crise do capitalismo; pelo contrário, são parte essencial dele. Para Marx, ao trabalhador a única coisa que ainda resta é a mão de obra para ser vendida (e por conseguinte para comprar o que o trabalhador e sua família necessitam para sobreviver – o próprio autor ironiza esse fato comparando-o com a escravidão, dando a entender que o escravo, que se vende, se encontra em melhor situação que o trabalhador, pois, por ser propriedade, seu dono não o deixará morrer de fome ou por outro motivo, seria prejuízo; mas, caso o trabalhador morra, como há desempregados de sobra, outro pode vir e substituir o lugar daquele sem que haja prejuízo ao patrão). O desemprego é então necessário, pois atende a uma demanda do mercado, que é a precarização do trabalho (que varia em intensidade de lugar para lugar): se há desemprego e uma situação de vida deplorável em Bangladesh, por exemplo, quando uma transnacional vai para o país em busca de mão de obra barata para a montagem de seus produtos, ela consegue contratar pessoas, explorá-las de maneira extrema e manter salários baixíssimos pelo tempo que for conveniente à empresa, à transnacional, até que esta mude de país ou região. Isso maximiza os lucros, a extração do mais-valor (mais-valia). A exploração deste caso se explica pelo fato de que, para sobreviver, ou mesmo para sobreviver em condições um pouco menos deploráveis, o trabalhador em questão trabalha independentemente da exploração de sua mão de obra. Esse trabalhador, assim, não pode contestar o que ganha ou simplesmente suas condições de trabalho, por correr o risco de ser demitido e pelo fato de que muito dificilmente isso mudaria alguma coisa e, numa análise sobre a Alienação em Marx, porque o trabalhador não consegue se identificar com o produto de seu trabalho, não sabe o valor do próprio trabalho, bem como a sociedade não sabe o valor do trabalho contido nas mercadorias; a sociedade e o trabalhador são alienados (e na época de Marx já o eram) – este seria outro motivo, menos empírico em relação à questão dada, da sujeição do trabalhador a condições deploráveis de trabalho.


Ainda sobre subempregos e exploração extrema da mão de obra, num exemplo que acontece hoje em dia, pode-se mencionar casos em que mulheres são contratadas bem jovens, caso não tenham filhos nem casa para sustentar (a fim de que seus salários sejam os mais baixos possíveis) e demasiadamente exploradas por alguns anos, de modo que, ainda novas, são demitidas quando já foram totalmente “gastas” (algo de certa forma semelhante à Lei dos Sexagenários à época do Império Brasileiro ou às cartas de alforria concedidas por muitos senhores de escravos quando estes não lhes eram mais úteis, foram completamente esgotados, desgastados, sendo que, libertos e inválidos, basicamente tinham que contar com a sorte para ter uma sobrevida por algum tempo). Se essas mulheres engravidarem (exames são feitos rotineiramente para verificar se engravidaram ou não), são demitidas. É algo similar, de certa forma, ao que empresas (principalmente nos EUA) já têm feito nos últimos tempos, ao evitar contratar ou ao demitir funcionários pelo fato de serem dependentes químicos, de álcool, tabaco ou substâncias ilícitas, por terem doenças genéticas a serem manifestadas, obesidade, et cetera, a fim de evitar custos futuros com planos de saúde ou com faltas do trabalhador por problemas de saúde. E isso em um nível bem melhor de salários e condições de trabalho; ou seja, reduzir custos para aumentar a extração de mais-valor e assim aumentar o lucro é uma constante no Capitalismo, com o trabalho precarizado ou não; esse ponto já foi há muito constatado por Marx e outros autores.

Há também, gravitando sobre a máxima do lucro, questões como “empregos de brincadeira”, nos quais só se trabalha por um tempo para “ganhar experiência” (como acontece em muitas empresas de fast food, por exemplo), externalidades (cortar todos os custos que não sejam necessários diretamente à empresa) e a questão de corporações pagarem multas por terem optado por transgredir a lei em prol da lucratividade, mesmo sabendo de perigos em seus produtos, por exemplo.

No documentário The Corporation, o último dos três exemplos anteriores é claramente mencionado: empresas pagam multas que saem mais baratas que consertar seus produtos, mesmo que os defeitos neles causem mortes, ferimentos gravíssimos ou problemas aos consumidores (no filme, há o exemplo de um carro que foi para o mercado mesmo defeituoso e que acabou causando mortes e ferimentos a consumidores, sendo que isso poderia ter sido evitado antes de colocá-lo em circulação).

Nesse documentário há uma interessante comparação entre corporações e psicopatas, visto que, na lei de muitos países (como os EUA), as corporações são vistas como cidadãos e várias atitudes das corporações se assemelham a atitudes de psicopatas. E tais atos são possíveis de serem feitos pelas corporações pois elas “não podem ser presas” por não serem cidadãos de carne e osso e seus membros se isentam de responsabilidade pelos crimes da corporação como um todo; é uma questão de optar por pagar multa ou não, a depender do que custará menos à corporação.

Essas corporações são privadas, não são do governo, mas este permite que elas existam; são propriedade privada, mesmo que dividida entre duas ou mais pessoas. Mais do que permitir, os governos, numa análise tendo Marx como matriz, querem que as corporações existam, pois os Estados (burgueses) têm a função de proteger e legitimar a propriedade privada. Apesar de tantas atrocidades que podem ser cometidas por corporações, o Estado serve para que elas existam. Assim, Marx pensava no Comunismo como uma Sociedade sem propriedade privada e, por conseguinte, sem Estado (que existe apenas para legitimar a última). E numa Sociedade tal, não haveria exploração do homem pelo próprio homem (ao menos depois de uma fase de transição, de uma Ditadura do Proletariado, na qual gradativamente o Estado deixaria de existir) nos termos de expropriação dos meios de produção do trabalhador e da exploração deste, alienação da produção do trabalhador, extração de mais-valor a partir dele, embora Marx não tivesse teorizado precisamente sobre o Comunismo em si, pois seria algo a ser criado conforme a História se desenvolvesse (e nem teria como ele ditar como seria o Comunismo, afinal, ele era demasiadamente materialista para tanto, para teorizar tudo sobre algo que não existia e cujas condições de criação ainda não estavam determinadas).

Para que “o proletariado implantasse sua ditadura”, poderia haver uma revolução, com armas (mas uma revolução social; a primeira da história, para o autor, visto que as outras foram políticas), uma crise de questão matemática, no qual o baixo número de funcionários e empregados em detrimento da crescente produção levaria o Capitalismo à ruína ou uma conscientização de classe, na qual todos os operários em algum momento parassem de trabalhar ou tomassem alguma atitude organizada para fazer esse modo de produção ruir. Mas, como a Escola de Frankfurt constatou posteriormente, nas primeiras décadas do século XX, nenhuma dessas três alternativas por Marx apontadas continua possível para a derrota do Capitalismo.

Saindo da esfera teórica do Comunismo para Marx, um dos efeitos hodiernos da exploração dos trabalhadores aliado ao desemprego, constatado em estudos que são feitos desde o século passado, é o aumento de doenças mentais decorrentes da pressão do trabalho, de não poder ser demitido, de não poder reivindicar, fazer greve (salvo exceções), com risco de serem demitidos e ficarem numa situação pior do que já estão sendo explorados. Esses temores são úteis às empresas, pois os funcionários ficam dóceis e eficientes.

É evidente que a exploração do homem pelo próprio homem existe no Capitalismo, é amoral e é par excellence necessária ao modo de produção capitalista, tanto nos tempos de Marx como hoje. Assim sendo, a contribuição de Marx é evidente ainda em nossos dias para entender os fundamentos, características do mundo em que vivemos, do ponto de vista econômico e social; é importante evitar “economicismos marxistas”, ver tudo do ponto de vista econômico (e ainda mais do ponto de vista econômico de Marx exclusivamente), mas é inegável que a visão do clássico autor é de extrema importância para que se entenda o período pelo qual passamos, dos pontos de vista econômico, social, histórico, ad infinitum (até porque enumerar tais pontos é tirar a interdisciplinaridade do autor que busca ver a realidade como um todo, é trair o próprio pensador de peso que foi Karl Marx).